segunda-feira, 16 de maio de 2011

A abordagem fenomenológica de Albert Borgmann

Segue mais um capítulo do texto sintetizado do texto de Alberto Cupani, este particulamente, eu gostei bem mais que o anterior, sua abordagem fenomenológica da tecnologia trás a tona dúvidas pertinentes em nossa relação com as tecnologias.
Vamos lá, parcipe!

A abordagem fenomenológica de Albert Borgmann

Alberto Cupani

Síntese por Djalma Gonçalves Pereira

Ao contrário de Bunge que acredita na tecnologia como uma forma técnica mais evoluída e potente graças a sua associação com a ciência, Borgmann que como veremos aqui, compreende a tecnologia como um modo tipicamente moderno de o homem lidar com o mundo, chegando a ser um padrão característico e limitador da existência humana que tornou-se intrínseco a vida cotidiana, a ponto de não percebermos.
Para Borgmann “o evento de maiores consequências do período moderno” é a tecnologia, por isso em sua obra ele propõe um estudo fenomenológico da mesma, a fim soluções para o problema que a tecnologia apresenta.
Borgmann justifica o caráter fenomenológico para sua pesquisa devido acreditar que só ela possui características que não deixam escapar nenhum dos aspectos da tecnologia, bem como suas especificidades.
O enfoque fenomenológico foi escolhido por Borgmann devido a sua percepção de que outros enfoques perdem de vista ou mesmo não reconhecem especificidades tecnológicas. As teorias que vêem a tecnologia como meio a serviço do homem, as instrumentais, são superficiais e as teorias que acreditam que a tecnologia seja autônoma, as substancialistas, deixam por explicar qual é o caráter da tecnologia. Sem contar as teorias pluralistas que insistem na multiplicidade de fatores a que responde a tecnologia, porém, isso a faz perder de foco o esquema básico que dá sentido ao conjunto. As ciências sociais são inconclusivas, pois as complexidades dos fenômenos sociais as quais a tecnologia está inserida tornam sua interpretação ambígua.
Borgmann acredita que a tecnologia e os seus problemas não serão compreendidos enquanto considerarmos estes, conseqüências de fatores sociais, políticos ou ecológicos. É preciso reconhecer na tecnologia um fenômeno básico, que tem sua formação na existência de dispositivos que nos fornecem produtos, ou seja, bens e serviços, seja ele um aquecedor elétrico, um automóvel ou uma televisão. Para isso devemos destacar que a noção de dispositivo difere da noção de coisa, sendo ambos paradigmas de duas formas diferentes da vida humana, sendo este o caminho de contraste através do qual Borgmann pretende mostrar a verdadeira identidade e a índole da tecnologia.
Dispositivos são essencialmente um meio, por isso se faz necessário distinguir a maquinaria do dispositivo e sua função. Sendo a função conhecida do usuário, a maquinaria é geralmente incompreendida e até mesmo incompreensível para o usuário. É a ignorância da máquina, como acontece, por exemplo, com o computador, pois, ainda que saibamos operá-lo bem (função), aliviando esforços, libertando de pesos ou resolvendo dificuldades, não compreendemos o funcionamento de sua maquinaria.
Diferentes dispositivos podem nos oferecer o mesmo produto, pois dispositivos tem equivalentes funcionais, estes tem por característica tornar disponível o produto correspondente, essa disponibilidade significa que os produtos podem ser consumidos de maneira instantânea, segura e fácil. Como exemplo temos o alívio de satisfação ao acender a luz, ouvir música, encontrar uma informação, todas possíveis apenas apertando um botão de um aparelho que encontra-se sempre a mão.
A disponibilidade possui ainda outras características, das quais podemos verificar na citação de Bergmann que se segue:
Uma forma de tornar disponível os produtos é torná-lo descartáveis. Não é apenas desnecessário, mas impossível manter e reparar guardanapos de papel, latas de conserva, canetas esferográficas ou qualquer outro produto destinado a ser usado uma vez. Outro modo da disponibilidade é tornar desnecessário o cuidado dos produtos. Os talheres de aço inoxidável não requerem polimento, os pratos de plástico não precisam ser manipulados com cuidado. Em outros casos, a manutenção e a reparação tornam-se impossíveis por causa da sofisticação do produto [...] os microcomputadores estão sendo usados cada vez mais porque vão se tornando “amigáveis”, isto é, fáceis de operar e compreender. Mas esse caráter “amigável” é precisamente o sinal do quanto se tem tornado grande o hiato entre a função acessível a todos e a maquinaria conhecida por quase ninguém... (Borgmann, 1984, p.47).
Os produtos e seu consumo constituem “a meta declarada do empreendimento tecnológico”, meta essa proposta no início da Modernidade, com a expectativa que o homem pudesse dominar a natureza. Essa expectativa convertida em programa anunciado por Descartes e Bacon, impulsionado pelo Iluminismo, não surgiu de um prazer de “poder” de mero imperialismo humano, mas da aspiração de libertar o homem da fome, da insegurança, da dor e da labuta, para enriquecer sua vida física e culturalmente. Esse ideal de liberdade foi quem moldou a sociedade nos países industrialmente desenvolvidos, não bastando portanto entender a tecnologia somente pelo aspecto de natureza dominada, associação econômica com a ciência. O avanço científico foi imprescindível para o surgimento das invenções tecnológicas, mas a ciência por si só, não pode fornecer um rumo nem explicar a tecnologia sendo incorporada como um modo de vida pela população.
Esse modo de vida implica em uma tendência de reduzir todo e qualquer problema a uma questão de relação entre meios e fins. O mundo dos dispositivos é um mundo de meros meios, sem fins últimos, que por si define a diferença entre técnica e tradicional e a tecnologia, pois na técnica toda relação meio-fim estava inserida em um contexto social, cultural ou ecológico, já na tecnologia a relação meio-fim vale universalmente independente dos contextos concretos. Vejamos, enquanto a lareira tradicional é um meio para aquecer o lar, promovendo relações entre os membros da família, pois seu uso depende do trabalho, além de incentivar a reunião da família e o cultivo dos costumes, o aquecedor moderno se reduz a sua função de fornecer calor.
Os dispositivos carecem de contexto, usados para diversos fins e combinados entre si sem restrições. Eles são assim ambíguos, sendo assim, nossa relação para come eles é de falta de compromisso, de envolvimento.
Borgmann comenta que em nenhum aspecto de nossa vida essa relação fica tão evidente quanto na propaganda, pois o apelo constante e sistemático ao consumo de dispositivos aparecem nas combinações mais insólitas, como carros associados a obras de arte, símbolos religiosos misturados a figuras sensuais, etc, acentuando a superficialidade dos dispositivos.
Para Borgmann a propaganda não cria a cultura de consumidores, mas a regula e a põe de relevo.
[...] o universo da propaganda é inteiramente um universo de produtos e consumo. Ela destila o aspecto frontal da tecnologia em forma ideal e assim apresenta o lado técnico e distintivo da nossa época. Deste modo, ela superou a arte como a apresentação arquetípica daquilo de que trata a nossa época. Na propaganda, a promessa da tecnologia é apresentada ao mesmo tempo em pureza e concretamente, e, portanto, da maneira mais atraente. Problemas e ameaças entram apenas como pano de fundo para descartar as benções da tecnologia. Assim, nos encontramos definidos arquetipicamente nas propagandas. Elas fornecem uma força estabilizadora e orientadora na complexidade da sociedade tecnológica ainda em desenvolvimento (Borgmann, 1984, p.55).
O consumo universal de produtos é a realização da promessa tecnológica. É o sonho de uma vida humana menos penosa e mais rica, que tem se transformado em uma cultura que visa apenas o lazer derivado de consumir cada vez mais produtos tecnológicos. É a vida dentro do paradigma da tecnologia, sem rumo e impositiva.
São exemplos de práticas focais, tocar um instrumento em companhia de outras pessoas, caminhar na natureza ou comer em família, todas dirigem a nossa atenção a coisas como mesa familiar, instrumento musical, natureza, em que não são meros meios para determinados fins, são fins em si mesmos. Não se tratam de elementos que podem ser colocados a serviço de qualquer propósito, pois reservam propósito próprio. São coisas com as quais nos comprometemos e que nos remetem a um contexto social, cultural e ecológico. São coisas profundas, coisas que reconhecemos e respeitamos em seu próprio direito.
Mas certamente é possível tratar algumas dessas coisas como meros meios:
Quando olhamos tecnologicamente para uma lareira pré-tecnológica, separamos da plenitude dos seus traços a função de fornecer calor como a única e finalmente significativa. Todos os outros traços são considerados então com parte da maquinaria e, estando sujeitos à lei da eficiência, tornam-se dependentes e indefinidamente mutáveis. A visão tecnológica de uma comida revela um agregado de sabores, texturas e características nutritivas. Só elas retêm significação estável [...] Analogamente, quando olhamos para uma árvore vemos certa quantidade de madeira ou fibra de celulose; os espinhos, os ramos, a cortiça e as raízes são resíduos. Uma rocha é 5 por cento de metal e o resto é lixo. Um animal é visto como uma máquina que produz tanto de carne. Qualquer uma das funções que não serve para esse propósito é indiferente ou incômoda (Borgmann, 1984, p.192).
E nisso consiste a atitude tecnológica, o universo humano perde coisas e práticas focais para passar a ser constituído apenas por dispositivos que se produzem, usam ou se consomem. É um mundo onde não só objetos naturais ou artificiais perdem seu foco, mas também os objetos sociais e culturais, como governo e educação, que são levados em consideração apenas como meios para fins circunstanciais.
Esse universo está dividido entre o labor e o lazer, em uma divisão que se espelha a que existe entre a função e a maquinaria do artifício.
A diferença do trabalho tradicional inserido em uma rede social e cultural que dava sentido a vida do homem, orientando-o na natureza, cultura e sociedade, está no labor tecnológico que se reduz a produção e manutenção das maquinarias que fornecem os artifícios, ou então, à produção de artifícios como meios de lazer, sendo esse último a diferença entre o prazer que eleva e refina, enobrecendo a vida humana, reduzindo a vida ao consumo indefinido de produtos tecnológicos, dissociado de qualquer preocupação com a excelência da vida pessoal.
A vida dentro do paradigma tecnológico tem um glamour que explica em parte a sua propagação. A tecnologia, como já foi lembrado, promete-nos alívio de tarefas penosas, com uma relação mais rica com o mundo graças a influencia de dispositivos que respondem a nossa impaciência com coisas que exigem cuidado e reparação, bem como ao nosso desejo de fornecer a nossos filhos o melhor desenvolvimento, e a vontade de nos afirmarmos na existência adquirindo bens que inspiram respeito. Mas tudo isso vai acompanhado de sentimento de perda, de pena e uma espécie de traição a outro tipo de vida, pois as realizações que representavam libertação “parecem ser contínuas com a procura de frívola comodidade”. Dá-se inclusive uma sensação de impotência, pois tudo ocorre como se os instrumentos tivessem acabado por definir os fins.
A sensação de estar sutilmente preso ao mundo tecnológico ainda que não pareça mais possível viver sem esses produtos, Borgmann acredita que o homem seja simplesmente arrastado pela tecnologia. Borgmann acredita que temos responsabilidade pela manutenção do modo de vida tecnológico que nos fascina em função do glamour já mencionado aqui antes.
As circunstancias sociais favorecem a manutenção e o progresso da tecnologia como paradigma. A desigualdade social favorece que cada um aspire ter o que o outro já têm. Nem a riqueza da ao homem poder sobre a tecnologia, pois esta constitui uma cultura, um horizonte em função do qual são tomadas todas as decisões, os mais bem providos estão tão sujeitos a seu padrão quanto os mais pobres. Mas nada disso implica para Borgmann, a crença de que a tecnologia constitua uma fatalidade.
As tentativas de diagnosticar e corrigir o rumo da sociedade tecnológica sofrem do defeito de pressupor aquilo que querem emendar. A promessa tecnológica está em harmonia com os ideais de liberdade, igualdade e auto-realização que são próprios da democracia liberal a qual foi constituída de acordo com o paradigma tecnológico.
As políticas filosóficas sobre a sociedade justa, ao deixarem de lado a questão da “vida boa” para limitarem-se a fundamentar a justiça, subestimam a singularidade da relação meios-fins no paradigma tecnológico e ignoram o quanto dependem dele (cf. Borgmann, 1984, p.95 e ss.).
Uma reforma que parta do reconhecimento do paradigma da tecnologia e da importância daquilo que ele vai nos fazendo perder: coisas práticas focais. A argumentação em favor de uma tal reforma não pode ser demonstrativa, à maneira das ciências, nem tão pouco paradigmática, como o foi a descrição do paradigma tecnológico, mas dêitica ou mostrativa, baseada naquelas experiências de coisas que possuem valor e direito de existir em si mesmas e não como meros meios, e no testemunho delas. A explicação dêitica não é concludente, mas apelativa, e pode ser sempre contestada (cf. Borgmann, 1984, cap.21).
Cupani acredita que Borgmann pretende com suas palavras despertar no leitor a experiência, a lembrança e o desejo daquelas coisas e práticas que podem centrar e orientar a vida humana, convencendo-se assim da necessidade e possibilidade de se contrapor à tendência do universo tecnológico.
A reforma proposta apela expressamente para restabelecer a importância da questão da vida boa, aparentemente eliminada na tecnologia, ou melhor, resolvida a seu modo, e encontrada pelas teorias éticas liberais.
Finalmente pode-se afirmar que para Borgmann é possível sim conceber uma utilização da tecnologia e dos seus aperfeiçoamentos, na medida em que permita e favoreça qualquer prática focal que tenhamos escolhido. Vista assim, a tecnologia realça o caráter de tais práticas, em vez de soterrá-las, como acontece quando se vive em cumplicidade com ela.

Vamos refletir?
Tente responder as seguintes questões:
1 – Como ficou para você a noção de “dispositivo” e “função”?
2 – Na afirmação de Borgmann que diz: “...a ciência por si mesma, não pode fornecer-lhe um rumo nem explicar por que a tecnologia tem chegado a ser um modo de vida”. Você concorda com o autor quando faz essa afirmação?
3 – Como você compreende a noção de “vida boa” descrita por Borgmann?
Vamos lá!
Participe conosco desse colóquio virtual.

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